URGE (RE)FORMAR O TRIBUNAL SUPREMO

A Cedesa, entidade que tem sede em Lisboa e se dedicada ao estudo e investigação de temas políticos e económicos da África Austral, em especial de Angola, propõe que a reestruturação do Tribunal Supremo angolano passe pelo aumento do número de juízes, uma nomeação transparente do presidente e juízes visitantes de outros países.

Vejamos, na íntegra, a análise desta entidade presidida por Felipe de Saavedra e Santos, e em que Rui Santos Verde é vice-presidente, Eliseu Gonçalves é presidente da Assembleia Geral e Miguel Almeida Dias é secretário-geral:

«1-Razões que fundamentam a reforma do Tribunal Supremo em Angola

A justiça angolana tornou-se, algo repentinamente, um dos temas quotidianos da discussão no espaço público. Isso aconteceu, essencialmente, devido ao facto da denominada “luta contra a corrupção” ser realizada através dos tribunais comuns. Parece óbvio que assim seja, mas, na realidade, não é tão habitual. Cada país tem escolhido os métodos que considera mais adequados para essa tarefa. Na China, onde debaixo da presidência de Xi Jinping se desenvolve um poderoso esforço contra a corrupção, tal empenho tem sido feito através de mecanismos internos do Partido Comunista, só intervindo os tribunais, numa fase final[1]. Na África do Sul, optou-se por criar uma Comissão que tudo explorou e analisou, e só depois, tendo um imenso dossier pronto, enviou os resultados para o poder judicial[2]. Quer isto dizer que não é obrigatório que o combate à corrupção se centre ou comece pelos tribunais. No entanto, foi essa a opção angolana.

Essa opção fez surgir demasiado à vista algumas fragilidades do Tribunal Supremo. A discordância entre vários juízes tornou-se patente, os atrasos e falta de decisão também, e a fundamentação discutível de muitos acórdãos tem sido anotada por muitos comentadores[3].

É verdade que o desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade. Na verdade, o legislador constitucional angolano quis fazer um tribunal seguindo o modelo da Supreme Court norte-americana enxertado num sistema judicial de tipo romano-germânico, isto é, português. Ora um tribunal de topo no sistema judicial português, alemão ou francês, nada tem a ver com um tribunal de topo num sistema anglo-americano. São conceitos e estruturas judiciais diferentes. O que se pede a um tribunal supremo norte-americano não é o que se pede a um supremo tribunal português. No primeiro caso, apenas grandes e inovadoras questões de direito lá chegam. É já uma espécie de tribunal de reflexão, enquanto, no segundo caso-romano-germânico- o supremo funciona como última instância de recurso para quase todos os casos judiciais.

Ora em Angola, pensou-se um tribunal à americana para funcionar à portuguesa. Portanto, uma estrutura leve e que apenas se dedicava a um pequeno número de processos teve de se defrontar com a tarefa de ser um tribunal habitual de recurso para uma miríade de casos. Isso só podia dar mau resultado, como deu.

Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual.

Iniciando o país simultaneamente uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado.

Não se afigurando possível pensar, neste momento, numa revisão constitucional, qualquer reforma deve ser feita no quadro da constituição em vigor.

2- As propostas de reforma do Tribunal Supremo (TS)

a) Aumento do número de juízes: 50

A primeira medida é quantitativa, mas necessária, face aos atrasos e imperativo de renovação técnica e geracional do Tribunal Supremo. Neste momento, o TS tem um quadro de 21 juízes, que está a ser alargado para 31 juízes nos termos da presente Lei Orgânica do Tribunal Supremo (Lei n.º 2/22, de 17 de Março).

Parece insuficiente. Portugal com uma população de um terço face a angolana tem 50 juízes conselheiros no seu Supremo Tribunal de Justiça. Espanha, com uma população mais semelhante a Angola, tem 71 magistrados no seu Tribunal Supremo. Por estes números e atendendo à semelhança de competências alargadas que estes tribunais têm em Angola, Portugal ou Espanha, facilmente se vê que são necessários mais juízes no tribunal em Angola daqueles que agora estão previstos.

Acredita-se que 50 (cinquenta) será um número adequado juízes no Tribunal Supremo de Angola, que permitirá uma forte renovação, tão imperativa, deste tribunal.

b) Racionalização das Câmaras: a Câmara de Assuntos Económicos e a Secção de crimes económico-financeiros

Os objectivos da política judicial impõem uma revisão do número de Câmaras no TS e uma maior especialização. Neste momento, a lei prevê cinco Câmaras: a Câmara Criminal, a Câmara do Cível, a Câmara do Contencioso Administrativo, Fiscal e Aduaneiro e a Câmara do Trabalho e a Câmara da Família e Justiça Juvenil (art.º 17.º da Lei Orgânica). No entanto, parecem estar apenas em funcionamento as Câmaras Criminal, Civil e Administrativa e do Trabalho.

Parecia melhor proceder a uma racionalização das Câmaras de acordo com as necessidades efectivas da sociedade. Assim, haveria uma Câmara Criminal, uma Câmara Civil (que englobaria a família e menores), uma Câmara Social (trabalho, segurança social e afins), uma Câmara Administrativa e Fiscal, e uma nova Câmara intitulada Câmara de Assuntos Económicos, esta Câmara teria duas secções, uma de Contencioso Comercial para lidar com os grandes contratos com relevância para o investimento e outra de Crimes Económico-Financeiros, especializando-se apenas no julgamento de crimes como a corrupção, branqueamento, peculato, etc.

No fundo, esta nova Câmara dos Assuntos Económicos seria responsável por responder aos novos desafios de política de investimento e contra a corrupção.

c) Modelo transparente de nomeação do Presidente: audição na Assembleia Nacional

Os dois mais recentes presidentes do Tribunal Supremo (Rui Ferreira e Joel Leonardo), por razões diferentes, têm sido alvo de muita contestação. Aliás, Rui Ferreira demitiu-se devido a essa contestação enquanto Joel Leonardo tem dificuldade em gerir os seus pares.

A CRA no seu artigo 180.º, nºs 3 e 4 estabelece que o Presidente do Tribunal Supremo é nomeado pelo Presidente da República, de entre 3 candidatos seleccionados por 2/3 dos Juízes Conselheiros em efectividade de funções, sendo o seu mandato de sete anos, não renovável.

Joel Leonardo foi designado pelo Presidente da República em 2019, portanto, o seu mandato só termina em 2026. Leonardo nasceu em 1962, pelo que só fará 70 anos em 2032.Quer isto dizer que, ao contrário de muitos rumores que fluem no mundo jurídico de Luanda, em termos formais, falta muito tempo para terminar o seu mandato.

No entanto, deveria ser introduzido um mecanismo adicional na nomeação, semelhante ao adoptado na recente revisão constitucional em relação ao Governador do Banco Nacional de Angola.

Nestes termos, o Presidente do Tribunal Supremo deveria ser nomeado pelo Presidente da República após audição na Assembleia Nacional, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) A audição do candidato é desencadeada por solicitação do Presidente da República;
b) A audição do candidato proposto termina com a votação do relatório-parecer;
c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação do candidato proposto.

Consequentemente, o Presidente do Tribunal Supremo só seria designado depois de ouvido publicamente na Assembleia Nacional.

d) Imparcialidade e independência no TS: o modelo do Botswana, juízes visitantes.

Uma das críticas que mais se ouve acerca do poder judicial em Angola é sobre a sua falta de independência ou pouca imparcialidade, seja perante o Executivo, seja perante mais fortes/poderosas. Não entramos aqui na substância dessas alegações, mas anotamos que mesmo que sendo falsas, a percepção da justiça desempenha um papel significativo. Não basta sê-lo, é preciso parecê-lo. Vem sempre à memória o dito do juiz inglês “”Não apenas a Justiça deve ser feita; também, deve ser vista a ser feita”, proferida por Lord Hewart CJ em R v Sussex Justices, ex parte McCarthy ([1924] 1 KB 256, [1923] All ER Rep 233). Portanto, não se trata apenas de defender que a justiça angolana não é dependente ou parcial, mas de utilizar símbolos que atestem essa mesma prática.

Um exemplo descomplexado pode ser aquele que durante muitos anos foi utilizado no Botswana, que em nada diminuiu o orgulho nacional ou soberania, e, pelo contrário, aumentou o prestígio do seu sistema de governo. Na verdade, até 1992, no Tribunal Superior (High Court) –o segundo mais importante na hierarquia dos tribunais- os juízes eram estrangeiros expatriados nomeados com contratos curtos de 2 a 3 anos[4]. No Tribunal Supremo (Court of Appeal), ainda um terço dos juízes são visiting justices (juízes visitantes)[5].

Quer isto dizer que algo de semelhante se poderia pensar para Angola, isto é, guardar algumas vagas no Tribunal Supremo (talvez um quarto) para juízes ou juristas de mérito contratados no estrangeiro com contratos suficientemente longos para lhes garantir a independência, mas não renováveis. Talvez contratos de cinco a sete anos.

Esses juízes visitantes teriam exactamente os mesmos poderes e competências que os outros juízes, apenas não poderiam ser Presidentes ou Vice-Presidentes do Tribunal, contudo, poderiam ocupar a função de Presidente de Câmara ou qualquer outra. Seriam recrutados em países da SADC[6] e da CPLP.

Alargando desta forma o Tribunal Supremo a juízes visitantes poder-se-ia abrir uma janela de renovação doutrinária e garantia de imparcialidade com juízes de outros países suficientemente próximos, mas adequadamente afastados. Eventualmente, poderia ser uma medida provisória por 10 ou 15 anos.

O que esta medida permitiria era criar um corpo alargado de debate judicial com várias visões, algumas tendencialmente independentes, que permitiria um diálogo mais frutífero na criação de um direito justo.

Aqui ficam várias sugestões de reforma do Tribunal Supremo de Angola de forma a torná-lo mais célere e eficaz no cumprimento das suas tarefas, bem como aumentando as suas garantias de independência.

[1] Rahul Karan Reddy, The Diplomat, 2022, China’s Anti-Corruption Campaign: Tigers, Flies, and Everything in Between, https://thediplomat.com/2022/05/chinas-anti-corruption-campaign-tigers-flies-and-everything-in-between/
[2] Zondo Comission, https://www.statecapture.org.za/
[3] Ver por exemplo, Manuel Luamba, DW, Justiça angolana está em descrédito fora do país?, https://www.dw.com/pt-002/justi%C3%A7a-angolana-est%C3%A1-em-descr%C3%A9dito-fora-do-pa%C3%ADs/a-63253282
[4] Cfr. https://www.justice.gov.bw/services/about-high-court
[5] Cfr. https://www.gov.bw/legal/hierarchy-courts

[6] SADC- África do Sul, Angola, Botsuana, Lesoto, Malavi, Maurício, Moçambique, Namíbia, República Democrática do Congo, Seicheles, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. CPLP-Angola , Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau , Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.»

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